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Uspto vs. Booking.Com: reflexões sobre o julgamento da Suprema Corte Americana

Assim como no Brasil, nos Estados Unidos não é possível registrar como marca uma expressão genérica ou meramente descritiva do produto ou serviço identificado: a expressão precisa ser distintiva.

Na lei brasileira (Lei 9.279/1996 — Lei de Propriedade Industrial), a referida vedação de registro marcário está prevista no artigo 124, inciso VI, que diz não ser registrável como marca o “sinal de caráter generico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir (…)”.

Já no direito americano, a vedação de registro como marca de expressões genéricas ou meramente descritivas decorre das regras e princípios do Lanham Act, que condicionam o registro marcário ao preenchimento do requisito da distintividade, que nada mais é do que a capacidade da marca para identificar e distinguir um empresário como o produtor/prestador de um determinado bem/serviço.

A disputa USPTO vs. Booking.com
Com base na ausência desse requisito da distintividade, o pedido de registro da marca Booking.com foi negado pelo USPTO — Escritório de Patentes e Marcas dos EUA (equivalente ao nosso INPI — Instituto Nacional da Propriedade Industrial) — em 2016: a negativa se fundamentou no argumento de que Booking.com seria uma expressão genérica e meramente descritiva do serviço que a empresa requerente presta: fazer reservas de hospedagens pela internet.

Ocorre que expressões genéricas ou meramente descritivas podem eventualmente adquirir um segundo significado (“secondary meaning”) para os consumidores, o que pode configurar sua distintividade e permitir seu registro como marca.

Com base nesse argumento, a decisão do USPTO foi reformada no Judiciário americano, e a Suprema Corte, no dia 30 de junho, manteve essa reforma: por 8 a 1, entendeu-se que “um termo genérico acrescido de .com é uma expressão genérica para uma classe de bens ou serviços — e, portanto, inelegível para proteção como marca — somente se tiver esse significado genérico/descritivo para os consumidores”.

Enfim, reconheceu-se que, na mente dos consumidores, a expressão Booking.com, formada pela junção de dois termos genéricos e meramente descritivos (booking: reservas; .com: sites) não tem um significado genérico/descritivo para serviços de reserva de hospedagem em geral, tendo adquirido um significado próprio que remete especificamente à empresa requerente da marca.

Portanto, não é toda expressão genérica que, acrescida do termo “.com”, poderá ser registrada como marca nos EUA. Com base no precedente da Booking.com, somente será possível o registro como marca se a expressão genérica/descritiva, acrescida do termo “.com”, adquirir um significado próprio e distintivo para os consumidores.

Explicada a tese firmada nesse julgamento, cumpre-nos destacar outros pontos importantes da decisão da Suprema Corte americana no caso USPTO vs. Booking.com que merecem atenção e reflexão.

O voto da juíza Ruth Ginsburg
No voto condutor da decisão da Suprema Corte, a juíza Ruth Ginsburg iniciou destacando que: I) segundo entendimento predominante, uma expressão genérica é aquela que identifica uma classe de bens ou serviços; II) tratando-se de expressão composta, deve-se analisar a expressão por inteiro, e não as palavras que a formam, isoladamente; e III) o significado relevante de uma expressão, para o direito marcário, deve levar em conta a percepção do consumidor.

Assim, disse ela, para saber se Booking.com é uma expressão genérica é preciso perquirir “se essa expressão, tomada com um todo, significa para os consumidores a classe dos serviços online de reserva de hotéis”.

Como as cortes inferiores afirmaram que “os consumidores de fato não percebem a expressão Booking.com nesse sentido”, e o USPTO não questionou esse fato, a juíza concluiu que “isso deveria resolver o caso: como Booking.com não é percebida como uma expressão genérica pelos consumidores, não é uma expressão genérica”.

Depois, a juíza Ginsburg analisou a pretensão do USPTO de estabelecer uma regra geral e abstrata no sentido de que todo termo genérico (no caso, booking), quando combinado a termo também genérico relacionado nomes de domínio na internet (no caso, “.com”), resultaria numa expressão igualmente genérica.

A juíza rechaçou essa pretensão, afirmando que ela “não é suportada pela própria prática passada do USPTO (que já registrou como marca as expressões art.com e dating.com), e não tem suporte na lei ou na política de marcas”.

Nesse ponto, o USPTO argumentou que há precedentes (caso Goodyear) no sentido de que a combinação de termo genérico com uma designação societária também genérica, como company (no Brasil, podemos comparar com companhia, cia, LTDA etc.), não permite o registro da expressão como marca.

Entretanto, a juíza rebateu esse argumento: primeiro, ela afirmou que apenas uma entidade pode ocupar um nome de domínio específico da internet de cada vez, de modo que um termo genérico combinado ao termo .com pode transmitir aos consumidores uma associação com um site específico”; segundo, ela reafirmou que o importante é a percepção do consumidor, princípio fundamental do Lanham Act“O caráter genérico (ou não genérico) de um termo específico depende do seu significado para os consumidores, ou seja, se os consumidores realmente percebem o termo como uma classe de bens/serviços ou, em vez disso, como uma expressão capaz de distinguir uma empresa entre os membros daquela classe de bens/serviços”.

Assim, é importante relembrar o que já dissemos neste texto em parágrafo anterior: a Suprema Corte americana, no precedente ora em análise, não definiu que qualquer termo genérico, acrescido de .com, configura uma expressão distintiva registrável como marca, mas apenas deixou claro que isso deve ser analisado, conforme o caso, de acordo com a percepção do consumidor: “Embora rejeitemos a regra oferecida pelo USPTO de que termos genéricos acrescidos de .com são expressões genéricas, não adotamos uma regra que os classifique automaticamente como expressões não genéricas”.

Quanto ao argumento do USPTO de que o registro da marca Booking.com daria ao titular dela o controle indevido sobre a palavra booking ou palavras semelhantes, “que outros deveriam permanecer livres para usar”, a juíza Ginsburg destacou que “várias teorias (‘probabilidade de confusão entre consumidores’ ou ‘uso justo’] garantem que o registro da marca Booking.com não dá ao seu titular o monopólio do termo ‘booking’ (reserva, em português)”, tampouco sobre variantes dessa palavra.

Nesse sentido, Ginsburg apontou que “o uso de uma expressão por um competidor só infringe uma marca registrada se houver probabilidade de confundir consumidores”, e destacou que mesmo quando há essa probabilidade, “a teoria conhecida como uso justo clássico protege de responsabilização quem usa um termo descritivo ‘de maneira justa e de boa fé’ e ‘de outra maneira que não como uma marca’, apenas para descrever seus próprios bens/serviços”.

Ainda sobre essa questão, a juíza registrou que o próprio titular da marca Booking.com reconheceu que ela, por ser descritiva, se trata de uma marca fraca, sendo improvável que variações próximas da expressão tenham o condão de caracterizar infração ao seu direito, permitindo-se ainda que concorrentes usem a palavra booking para descrever seus próprios serviços.

Outro argumento do USPTO contra o registro da marca Booking.com se referiu ao fato de que a expressão já estava registrada como nome de domínio, o que já garantia à empresa o direito de uso exclusivo dela na internet. No entanto, a juíza Ginsburg retrucou afirmando que “a conexão exclusiva entre um nome de domínio e seu proprietário (…) torna a proteção da marca mais apropriada, e não menos”.

Por fim, o USPTO também alegou que o reconhecimento do caráter genérico da expressão Booking.com não a deixaria desprotegida, porque essa proteção, conforme precedentes, decorreria das regras de proteção contra a concorrência desleal. Porém, a juíza Ginsburg rebateu esse último argumento afirmando que “o registro da marca ofereceria maior proteção à Booking.com”, uma vez que, conforme um dos próprios precedentes citados pelo USPTO, a lei de concorrência desleal obrigaria o concorrente a, no máximo, ‘se esforçar mais’ para reduzir a confusão (entre consumidores), mas não o obrigaria a deixar de comercializar seu produto usando o termo em disputa”.

O voto da juíza Sonia Sotomayor
A juíza Sonia Sotomayor acompanhou a decisão majoritária da Suprema Corte americana, no sentido de não existir uma regra per se contra o registro marcário de termos genéricos acrescidos do termo “.com” ou similares.

É importante ressaltar, porém, que Sotomayor fez duas observações: I) para aferir a percepção do consumidor sobre se uma expressão é genérica ou descritiva, não se deve levar em conta apenas pesquisas com consumidores, mas também outras fontes (dicionários etc.); e II) pode ter havido acerto do USPTO quanto ao reconhecimento do caráter genérico da expressão Booking.com (e consequentemente erro das cortes inferiores), mas como isso não foi objeto de questionamento no recurso para a Suprema Corte, não podia ser revisto.

O voto divergente do juiz Stephen Breyer
O único voto divergente foi assinado pelo juiz Stephen Breyer, para quem a decisão da Suprema Corte foi “inconsistente com os princípios do direito marcário”, que “não protegem termos genéricos, os quais nada mais fazem do que descrever o produto ou serviço”, exatamente como ocorre, segundo ele, com o termo Booking.com, o qual “informa ao conssumidor a natureza básica do seu negócio e nada mais”.

Breyer inicou seu voto apontando que existem cinco tipos diferentes de termos para o direito marcário: I) fantasiosos; II) arbitrários; III) sugestivos; IV) descritivos; e V) genéricos. Os três primeiros tipos seriam registráveis como marca. O quarto tipo, que “transmite informações sobre uma qualidade ou característica dos bens ou serviços”, só seria registrável se adquirisse um “significado secundário” para o consumidor, “passando a ser associado com um empresário específico ou seu produto”. Por fim, o quinto tipo, que “nada mais faz do que informar o consumidor o tipo de produto que o empresário vende”, não seria registrável como marca, porque seria meramente “descritivo de uma classe de bens”.

Quanto ao fato de esses termos genéricos não serem registráveis como marca, “mesmo que tenham se identificado com um primeiro usuário na mente do público consumidor”, o juiz Breyer explicou que isso se dá por um motivo simples: evitar que o titular da marca monopolize a expressão genérica e impeçam que concorrentes descrevam seus produtos/serviços como eles realmente são.

Seguindo seu voto, o juiz Breyer reconheceu que é difícil diferenciar termos descritivos e termos genéricos, principalmente quando uma empresa junta dois termos genéricos para formar uma expressão composta. Nesse caso, disse ele, “apesar da natureza genérica dos seus termos componentes, a expressão como um todo não é necessariamente genérica”, cabendo aos tribunais analisar “se a combinação de termos genéricos transmite algum significado distintivo e identificador que cada termo, individualmente, não possui”.

Breyer também lembrou o já mencionado caso da Goodyear, no qual a Supema Corte decidiu que “anexar a palavra ‘company’ (ou uma outra designação societária qualquer) a um termo genérico descritivo de uma classe de bens não produz uma expressão composta protegível” pelo direito marcário.

Ele ainda sustentou que esse precedente, a despeito de ser anterior ao Lanham Act, continua válido e exige que seus princípios sejam aplicados “no novo contexto dos nomes de domínio na internet”. Nesse sentido, disse o juiz, tal como as designações societárias em questão no caso Goodyear, o termo .com não tem capacidade para identificar e distinguir a fonte de bens ou serviços, sendo meramente um componente necessário de qualquer endereço eletrônico, e quando combinado com um nome genérico de um classe de bens ou serviços, transmite apenas a informação de que aquele empresário opera um site relacionado a esses itens”.

Quanto ao argumento de que os nomes de domínio são diferentes das designações societárias, uma vez que estas podem ser usadas por várias empresas, mas aquele só pode ser usado por uma única empresa, o juiz Breyer rebateu afirmando que isso não é suficiente para afastar o princípio fundamental de que “termos que apenas transmitem a natureza do negócio da empresa devem permanecer livres para uso de todos”.

Já no tocante ao argumento de que os consumidores, conforme pesquisas realizadas, não enxergam a expressão Booking.com como referente à classe de serviços de reserva de hotéis, e, sim, como referente a uma empresa específica, o juiz Breyer questionou o valor probatório dessas pesquisas e também fez a seguinte ponderação: o fato de os consumidores associarem um termo genérico acrescido de “.com” a uma empresa específica pode ser decorrente de diversos fatores (a empresa pode ter sido a pioneira ou ter investido muito em publicidade), mas isso nunca vai afastar a natureza genérica do termo: “A pesquisa questionou se os consumidores associam a expressão Booking.com a uma empresa específica, mas não tratou nada sobre a expressão em si, de modo que essa associação não estabelece que uma expressão não é genérica”.

Por fim, para além de afirmar que o acréscimo de .com a um termo genérico não o faz deixar de ser genérico, mantendo-o inelegível para registro como marca, o juiz Breyer destacou que a decisão da Suprema Corte americana “ameaça produzir sérias consequências anticoncorrenciais no mercado de serviços online”.

Segundo Breyer, os titulares de nomes de domínio com termos genéricos já desfrutam de inúmeras vantagens competitivas, independentemente do direito de exclusividade decorrente de eventual registro como marca: exclusividade automática [de uso na internet no mundo todo], facilidade de lembrança e descoberta pelo consumidor, menos esforço e custo para ‘educar consumidores’, efeito de ‘propaganda gratuita’, efeito de ‘confiança e credibilidade instantâneas’ etc.

Assim, disse o juiz, conceder proteção marcária a um termo genérico acrescido de “.com” vai conferir ainda mais vantagens competitivas ao titular dessa marca, que poderá impedir concorrentes de usarem nomes de domínio similares (no caso, o juiz citou como exemplos Bookings.comeBooking.comBooker.com ou Bookit.com).

Apesar de a própria Booking.com ter dito que não fará isso, Breyer ponderou que outras empresas que também consigam registros de termos genéricos acrescidos de .com podem fazê-lo: “Sob o raciocínio da maioria, muitas empresas poderiam obter um registro de marca adicionando .com ao nome genérico de seu produto (por exemplo, pizza.com, flores.com etc.), e na medida em que a internet cresce e mais e mais empresas a usam para vender seus produtos, o risco de conseqüências anticoncorrenciais aumenta”.

Quanto ao contra-argumento da maioria, presente no voto condutor da juíza Ginsburg, no sentido de que essas consequências anticoncorrenciais seriam neutralizadas pela aplicação de teorias como a que exige “probabilidade de confusão entre consumidores” ou a que assegura o “uso justo” a competidores, o juiz Breyer pontuou o seguinte: “Esta resposta será um conforto frio para os concorrentes das marcas ‘generic.com’. Os proprietários dessas marcas podem procurar estender os limites de proteção delas através de processos judiciais, com chances de serem bem-sucedidos (o proprietário do ‘advertising.com’ obteve liminar contra o uso do ‘advertise.com’ pelo concorrente). E mesmo que não tenham êxito, a ameaça de litígios custosos com certeza vai fazer com que concorrentes não usem variantes da marca registrada e privilegiará as empresas estabelecidas sobre novos entrantes no mercado”.

Com essas muito bem fundamentadas razões, o juiz Breyer concluiu seu voto afirmando que, no seu entender, a expressão Booking.com é genérica e se refere a um serviço de reservas na internet, algo que vários competidores oferecem nesse mercado online. Breyer ainda destacou que essa sua conclusão vale para os demais casos de termos genéricos acrescidos de “.com”, os quais também não deveriam ser registrados como marca, sob pena de haver “uma proliferação de marcas ‘generic.com’, concedendo a seus proprietários o monopólio sobre uma zona de nomes de domínio úteis e fáceis de lembrar”. Isso, concluiu Breyer, “tende a inibir, ao invés de promover, a livre concorrência no mercado online”.

Considerações finais
C
omo um crítico de quaisquer interpretações que ampliem a proteção de direitos de propriedade intelectual (que prefiro chamar de monopólios intelectuais), eu discordo da decisão da Suprema Corte americana, capitaneada pelo voto da juíza Ruth Ginsburg, e me alinho ao voto divergente do juiz Stephen Breyer.

Em mais de uma oportunidade eu já escrevi que, em processos nos quais se discute a extensão da proteção do direito de exclusividade decorrente do registro de uma marca (ou de outro monopólio intelectual qualquer), o Poder Judiciário deve ter muita cautela para não conferir chancela estatal a mero capricho de empresário estabelecido no mercado (normalmente o líder do respectivo mercado), com limitação indevida à livre iniciativa e à livre concorrência, algo que, em última análise, acaba prejudicando os consumidores.

Aqueles que usam termos genéricos na construção de suas marcas devem saber que, como contrapartida à sua falta de criatividade e aos benefícios naturais que esses termos conferem, o ordenamento jurídico ou I) não vai lhes conceder proteção marcária (direito de uso exclusivo); ou, quando muito, II) vai conceder essa proteção de forma mitigada, sem impedir que concorrentes usem expressões iguais ou semelhantes para identificar seus produtos ou serviços.

Encerro repetindo o que já escrevi outras vezes: é preferível a competitividade decorrente da livre imitação ao monopólio decorrente da proteção exagerada aos direitos de propriedade intelectual.