Pouco comentada, a Medida Provisória 876 representou um grande avanço no processo de desburocratização que tem sido conduzido por uma das áreas do Ministério da Economia, comandada pelo secretário especial Paulo Uebel.
A MP, na sua redação original, (i) determinou o registro automático de atos constitutivos de empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitada e sociedades limitadas que façam uso de instrumento padrão fixado pelo Drei (Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração), e (ii) autorizou advogados e contadores a declararem a autenticidade de documentos no âmbito das Juntas Comerciais, dispensando a autenticação em cartório.
Na sua tramitação no Congresso, a MP recebeu várias emendas que se alinhavam com o ideal de desburocratização que ela encarnava. O relator, deputado Áureo Ribeiro (SD-RJ), acolheu muitas dessas emendas e ainda fez, ele próprio, outros acréscimos no texto.
Assim, o PLV (Projeto de Lei de Conversão) aprovado na comissão mista presidida pelo senador Jorginho Mello (PL-SC) acabou se transformando num amplo diploma legislativo de desburocratização, prevendo importantes alterações na Lei 8.934/1994 (Lei de Registro de Empresas), dentre as quais se destacava a regra que determinava não só a constituição, mas também a alteração e a extinção automáticas de aproximadamente 96% das empresas registradas no País.
Ocorre que o PLV, que tinha prazo fatal de apreciação na última quinta-feira, dia 11/07, não foi sequer lido no Plenário da Câmara, o que provocou a perda de eficácia da MP, nos termos do art. 62, § 3º da Constituição Federal.
Em termos de simplificação e desburocratização do ambiente de negócios, há muitos motivos para lamentar essa perda de eficácia: além de as regras originais da MP (registro automático e declaração de autenticidade por advogados e contadores), que já estavam sendo aplicadas na prática e gerando resultados extremamente positivos1, deixarem de produzir efeitos, outras ótimas regras que constavam do PLV morrem antes mesmo de saírem do papel.
A título exemplificativo, o PLV revogava o art. 2º, parágrafo único, bem como alterava o art. 35, parágrafo único, da Lei 8.934/1994, acabando com a obrigatoriedade do NIRE (Número de Identificação do Registro de Empresas), um cadastro estadual absolutamente dispensável. O PLV também acrescentava um parágrafo único ao art. 4º da Lei 8.934/1994, acabando com a taxa de manutenção do CNE (Cadastro Nacional de Empresas) e com a necessidade de preenchimento da FCN (Ficha do Cadastro Nacional)2. Outro ponto importante do PLV era o acréscimo de um parágrafo ao art. 55 da Lei 8.934/1994, isentando de custos a extinção de empresários individuais, EIRELI e sociedades limitadas3.
Mas se o PLV tinha tantas regras boas para os usuários do serviço público de registro empresarial, por que não foi aprovado pelo Congresso, morrendo por caducidade sem ter tido a chance de sequer ser debatido em pelo menos uma das Casas Legislativas?
O motivo é, no mínimo, questionável: resistência de entidades de classe ao fim do vocalato das Juntas Comerciais, outra regra que foi incluída no texto do PLV pelo relator, acolhendo emenda do deputado Alexys Fonteyne (Novo-SP).
Proponho-me a explicar, nas linhas a seguir, por que é imprescindível debater esse assunto, e tentarei demonstrar que a emenda de extinção dos vogais era mais uma medida importantíssima do PLV, em termos desburocratização.
Em artigo publicado no Valor em 04/12/2018, o jurista Armando Rovai, ex-presidente da Junta Comercial do Estado de São Paulo e profundo conhecedor do arcabouço jurídico relacionado ao registro empresarial no Brasil, assim se referiu às Juntas Comerciais:
As Juntas, por sua vez, tratam-se de órgãos obsoletos e com organizações internas ultrapassadas e burocráticas. Há nas suas estruturas, ainda, resquícios da “Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação Deste Estado do Brasil e seus Domínios Ultramarinos”, criada por D. João VI, após a chegada da Corte ao país. Ainda, no âmbito das Juntas Comerciais, nos deparamos com a figura de vogais, pessoas nomeadas por entidades de classes, para representação no órgão público. Algo já descartado, por exemplo, na Justiça do Trabalho, atendendo aos preceitos de transparência e de funcionalidade.
(Fusão ministerial e o combate à burocracia)
De fato, a existência do vocalato nas Juntas Comerciais é a mais clara demonstração do quão arcaica e ultrapassada ainda é a estrutura administrativa desses órgãos, que cumprem uma função tão importante para o ambiente de negócios de um País: o registro empresarial.
O paralelo com a antiga estrutura da Justiça do Trabalho, que tinha Juntas de Conciliação e Julgamento formadas por juízes classistas, indicados pelas entidades de classe dos empregadores e dos empregados, é pertinente. Os vogais das Juntas Comerciais também são indicados por entidades de classe e possuem competência decisória acerca de importantes atos sujeitos a registro.
Ocorre que a Justiça do Trabalho já teve essa sua estrutura reformulada há tempos, desde a promulgação da Emenda Constitucional 24/1999 (!), que acabou com os juízes classistas em homenagem a princípios constitucionais como o da eficiência. A propósito, vale transcrever um excerto da Exposição de Motivos da referida emenda:
A esse propósito, não tem mais sentido a organização ainda existente, com juízes chamados classistas, despreparados para a função judicante e que mais dificultam do que agilizam a aplicação da justiça para a classe trabalhadora.
Juízes especiais, nas comarcas de maior população, recrutados na forma prevista pela Constituição, com as garantias de inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade, dará à classe trabalhadora, como já o faz a justiça comum, prestação jurisdicional mais condizente com as relações entre empregadores e empregados que o atual sistema propicia.
O mesmo raciocínio, com as devidas adaptações, pode ser aplicado ao vocalato das Juntas Comerciais: não faz mais sentido, em 2019 (!), a manutenção de uma instituição cujos membros são indicados por critérios políticos pelas respetivas entidades de classe, sendo importante lembrar que tal instituição possui competência decisória no âmbito das Juntas Comerciais, o que exige dos seus membros conhecimentos técnicos muito específicos, relacionados ao registro empresarial.4
No lugar dos vogais, as Juntas Comerciais deveriam possuir técnicos e analistas especializados, contratados por meio de concurso público e com regime de trabalho em tempo integral (os vogais não trabalham em tempo integral, frequentando as Juntas Comerciais esporadicamente e sendo remunerados por presença nas sessões de julgamento de que participam, por meio dos famigerados “jetons”).
A existência de um corpo de técnicos e analistas “concursados” contribuiria para uma maior eficiência no processo decisório no âmbito das Juntas Comerciais: além de o concurso público garantir a contratação de pessoas qualificadas para a função, a estabilidade desses servidores permitiria a sua especialização constante, com a aquisição de expertise nos assuntos relativos ao registro empresarial (os vogais possuem mandato, e a constante alteração do vocalato exige que, de tempos em tempos, novas pessoas tenham que aprender, muitas vezes “do zero”, os temas mais básicos do registro empresarial).
A extinção do vocalato também ajudaria no combate a um dos maiores problemas do registro empresarial brasileiro, segundo reclamações dos próprios usuários desse importante serviço público: o desrespeito às normas legais e infralegais (instruções normativas do Drei) sobre a matéria. Havendo um corpo de técnicos e analistas “concursados”, seria mais fácil proceder a uma atuação correcional sobre eles (os vogais muitas vezes decidem “politicamente”, em desrespeito às normas legais e infralegais vigentes, sem que isso lhes acarrete qualquer tipo de responsabilização).
O principal argumento das entidades de classe para a manutenção do vocalato é o da representatividade: é importante, dizem, que essas entidades tenham assento nas Juntas Comerciais, a fim de que sejam ouvidas e participem de sua administração. Esse argumento, porém, é facilmente rebatido.
O PLV aprovado na comissão mista determinava, em seu art. 2º, parágrafo único, que as Juntas Comerciais deveriam criar conselhos consultivos de usuários, nos termos da Lei 13.460/20175 e da regulamentação do Drei, e esses conselhos com certeza seriam compostos por representantes das mesmas entidades de classe que hoje indicam os vogais. Ora, esses conselhos seriam órgãos que assegurariam representatividade às entidades, fazendo-as participar de forma mais ativa na gestão das Juntas Comerciais e na formulação de suas políticas públicas.
Enfim, outros motivos que justificam a extinção do vocalato poderiam ser apontados, mas creio que os mencionados nesse texto já são mais do que suficientes. As Juntas Comerciais tem se modernizado bastante, inclusive com a digitalização de seus procedimentos, de modo que é até estranho imaginá-las, em meio a todo esse processo de modernização, com a manutenção, em sua estrutura administrativa, de uma instituição tão anacrônica como o vocalato.
Finalizo destacando que o texto do PLV da MP 876, com exceção das regras que extinguiam os vogais, foi incorporado no PLV da MP 881 (a conhecida MP da Liberdade Econômica), de modo que é possível salvar as boas regras de desburocratização aqui mencionadas. Mas a questão da extinção dos vogais precisa, o quanto antes, voltar ao Congresso Nacional, e tomara que quando isso ocorrer a burocracia não vença a batalha novamente.
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1 É verdade que o registro nas Juntas Comerciais, uma das três etapas do procedimento de abertura de empresas no Brasil (as outras etapas são a viabilidade e o licenciamento), já é bastante rápido, mas ainda assim a regra do registro automático era de extrema importância: primeiro, porque mesmo um registro feito em horas é mais lento do que um registro feito automaticamente; segundo, porque o saneamento de eventuais vícios sanáveis não impedia a imediata obtenção do registro.
2 Redução estimada de custos para os empreendedores, no período de um ano: R$ 36 milhões (trinta e seis milhões de reais).
3 Redução estimada de custos para os empreendedores, no período de um ano: R$ 58 milhões (cinquenta e oito milhões de reais).
4 Faço aqui um registro deveras importante: minha defesa do fim do vocalato não tem absolutamente nada de pessoal. Conheço vogais que possuem vasto conhecimento técnico em matéria de registro empresarial e exercem suas funções com zelo e dedicação, contribuindo para o bom funcionamento das Juntas Comerciais em que atuam. No entanto, isso não é, infelizmente, a regra.
5 Art. 18. Sem prejuízo de outras formas previstas na legislação, a participação dos usuários no acompanhamento da prestação e na avaliação dos serviços públicos será feita por meio de conselhos de usuários.
Parágrafo único. Os conselhos de usuários são órgãos consultivos dotados das seguintes atribuições:
I – acompanhar a prestação dos serviços;
II – participar na avaliação dos serviços;
III – propor melhorias na prestação dos serviços;
IV – contribuir na definição de diretrizes para o adequado atendimento ao usuário; e
V – acompanhar e avaliar a atuação do ouvidor.
Art. 19. A composição dos conselhos deve observar os critérios de representatividade e pluralidade das partes interessadas, com vistas ao equilíbrio em sua representação.
Parágrafo único. A escolha dos representantes será feita em processo aberto ao público e diferenciado por tipo de usuário a ser representado.
Art. 20. O conselho de usuários poderá ser consultado quanto à indicação do ouvidor.
Art. 21. A participação do usuário no conselho será considerada serviço relevante e sem remuneração.
Art. 22. Regulamento específico de cada Poder e esfera de Governo disporá sobre a organização e funcionamento dos conselhos de usuários.