Em razão de sua novidade, as operações com criptomoedas possuem parca disciplina legal, o que leva a profundas divergências sobre o seu enquadramento jurídico. Seriam as criptomoedas moedas e, portanto, submetidas aos regramentos do Banco Central? Seriam valores mobiliários regulados pela Comissão de Valores Mobiliários? Ou, ainda, seriam meros ativos, bens móveis regulados pelo Direito Civil?
Em novembro de 2018, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Conflito de Competência 161.123, firmou um importante precedente sobre a matéria. Naquele processo discutia-se a competência para o julgamento de crimes relacionados a criptomoedas (no processo em questão, bitcoins).
O caso tratava de um inquérito policial para apurar a conduta de pessoas que estavam captando investidores para especular no mercado de bitcoins. Como os envolvidos não possuíam registro no Banco Central (Bacen), nem na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a investigação apurava a prática dos crimes previstos nos artigos 7º, II, da Lei 7.492/1986 [1] e 27-E da Lei 6.385/1976 [2], relativos à negociação irregular de valores mobiliários.
Apesar de se tratarem de crimes federais, foi suscitado conflito negativo de competência pelo juízo federal. A 3ª Seção do STJ concluiu pela competência da Justiça estadual, com base no fato de que tanto o Bacen quanto a CVM haviam se manifestado no sentido de que o bitcoin não é considerado uma moeda eletrônica nem um valor mobiliário.
Em março de 2020, a 6ª Turma do STJ, que compõe a 3ª Seção, analisou a questão novamente ao julgar o Habeas Corpus 530.563, também relatado pelo ministro Sebastião Reis. Dessa vez, contudo, decidiu-se em sentido oposto ao CC 161.123.
Segundo o relator de ambos os casos, a grande diferença é que no CC 161.123 “não havia denúncia formalizada” e nenhum dos juízos “cogitou que o contrato celebrado entre o investigado e as vítimas consubstanciaria um contrato de investimento coletivo”. Por outro lado, no HC 530.563 “já há denúncia ofertada, na qual foi descrita e devidamente delineada a conduta do paciente e dos demais corréus no sentido de oferecer contrato de investimento coletivo, sem prévio registro de emissão na autoridade competente”.
Em razão da posição divergente do STJ sobre a questão, o objetivo deste artigo é explicar “se” e “como” uma operação com criptomoedas pode ser considerada como um valor mobiliário, o que definirá, em última análise, se a competência para processar questões envolvendo operações com criptomoeda (em especial, crimes cometidos por meio dessas operações) é da Justiça estadual ou da Justiça federal.
O que são criptomoedas?
Resumidamente, pode-se dizer que uma criptomoeda é um ativo virtual (token, para mencionar a expressão já consagrada pelo mercado) que confere algo para o seu titular, uma espécie de contrapartida: se o ativo virtual confere a possibilidade de comprar bens ou serviços diretamente, como se fosse dinheiro propriamente dito, tem-se um coin token (o bitcoin é o principal exemplo); se o ativo virtual confere apenas um direito de acesso a produtos ou serviços futuros dentro de uma plataforma da empresa emissora, tem-se um utility token [3] (imagine que você adquiriu, por exemplo, Uber tokens, que permitem pagamento de “corridas” no aplicativo da Uber); por fim, se o ativo virtual confere “direitos societários”, que são típicos de investidores, tem-se um security token (imagine que você adquiriu um token que confere direito de participação nos lucros de uma empresa ou de votação em suas assembleias, por exemplo).
Embora artificial, pois há criptomoeda que podem se encaixar em mais de uma dessas categorias, a classificação proposta no parágrafo anterior — coin token, utility token e security token — é bastante útil, especialmente para os propósitos deste artigo.
O que são valores mobiliários?
É difícil estabelecer uma definição precisa de valor mobiliário, uma vez que a nossa legislação elenca diversas espécies, sendo algumas delas — especialmente aquela que uma criptomoeda pode configurar — extremamente abrangentes.
Na esfera legislativa, os valores mobiliários estão definidos na Lei 6.385/1976, em especial em seu artigo 2º. A maioria dos incisos configura como valores mobiliários instrumentos já conhecidos, como ações, debêntures e notas comerciais. Contudo, além do rol de instrumentos considerados como valores mobiliários, a lei prevê uma categoria ampla e flexível, de modo a enquadrar novos instrumentos como valores mobiliários [4].
Essa definição ampla está prevista no artigo 2º, inciso IX, da Lei 6.385/1976, que diz serem valores mobiliários, “quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”.
O legislador brasileiro, ao inserir o inciso IX ao artigo 2º da Lei 6.385/1976, inspirou-se no conceito de “contrato de investimento coletivo” (CIC), construído nos Estados Unidos pela jurisprudência norte-americana, que se baseia fundamentalmente no conhecido Howey Test.
De acordo com o Teste de Howey, um determinado negócio se caracteriza como CIC e, consequentemente, como valor mobiliário (security) se: I) há investimento em dinheiro; II) há um empreendimento comum; III) há expectativa de lucro; e IV) esse lucro deriva dos esforços de outrem.
Apesar de ter sido inspirado pela definição norte-americana, o conceito de contrato de investimento coletivo previsto na Lei 6.385/1976 com ele não se confunde. A principal diferença entre os conceitos de security e o de contrato de investimento coletivo reside no requisito da “expectativa de lucro” do Howey Test.
Para o preenchimento desse requisito do Howey Test, a concepção de lucro a ser adotada não se restringe ao conceito de lucro contábil, significando qualquer renda ou retorno, podendo se originar de dividendos, outros pagamentos periódicos ou o aumento do valor do investimento [5].
A Lei 6.385/1976 adotou um conceito mais restritivo do que a “expectativa de lucro”, exigindo que o contrato, para configurar um valor mobiliário, “ger(e) direito de participação, de parceria ou de remuneração” ao investidor.
Portanto, para que um contrato seja considerado um contrato de investimento sob o ordenamento jurídico brasileiro, o direito de participação, parceria ou remuneração deve se originar diretamente da relação entre o investidor e o empreendedor.
Como saber se criptomoedas se caracterizam como valores mobiliários?
Partindo-se do conceito de criptomoedas que expusemos, bem como da definição legal de valor mobiliário prevista no artigo 2º, inciso IX, da Lei 6.385/1976, parece-nos claro que o foco da CVM, no exercício de sua competência regulatória do mercado de capitais, são os security tokens, facilmente caracterizáveis como valores mobiliários, da espécie “contratos de investimento coletivo” (CIC). Não obstante, a própria CVM não descarta a possibilidade de um utiliy token configurar, excepcionalmente, um valor mobiliário [6].
O ICO do Niobium Coin, realizado pela Bolsa de Moedas Virtuais Empresariais de São Paulo (Bomesp), foi a única oferta de um utility token analisada pela CVM até o momento [7] [8]. Segundo a oferta, a criptomoeda seria utilizada para a aquisição de outras criptomoedas que viessem a ser negociadas na plataforma da Bomesp.
O colegiado da CVM concluiu que a criptomoeda ofertada não poderia ser configurada como um valor mobiliário, por faltar-lhe o requisito do “direito de participação, de parceria ou de remuneração” previsto no artigo 2º, IX, da Lei 6.385/1976.
O entendimento apresentado pela CVM no “caso Niobium Coin” reafirma o entendimento que já tinha sido adotado pela Comissão no processo CVM n.º RJ 2009/6346, no sentido de que “o caráter lucrativo deveria dizer respeito ao próprio título, estando diretamente relacionado à sua natureza de instrumento de investimento” para a sua configuração como um valor mobiliário. A presença de um caráter especulativo e a possibilidade de valorização do ativo e sua negociação em um mercado secundário não são suficientes para enquadrar um instrumento como valor mobiliário.
Dessa forma, adotando-se a interpretação da CVM ao artigo 2ª, IX, da Lei 6.358/1976, para que uma criptomoeda seja enquadrada como um valor mobiliário, na categoria contrato de investimento coletivo, é necessário que ela preencha os seguintes requisitos: I) ser ofertada publicamente; II) gerar um direito de participação, parceria ou remuneração, que esteja diretamente ligado à natureza da criptomoeda, excluído o potencial especulativo; e III) que esta remuneração advenha do esforço de terceiros que não o investidor.
Portanto, é possível afirmar a priori que os coin tokens e os utility tokens não podem ser considerados valores mobiliários sob a lei brasileira, pois não preenchem os critérios indicados no artigo 2º, IX, da Lei 6.385/1976. Como consequência, a simples negociação desses ativos, assim como a atividade de intermediação realizada por exchanges, não configura os crimes previstos nos artigos 7º, II, da Lei 7.492/1986 e 27-E da Lei 6.385/1976, uma vez que a sua tipificação pressupõe a existência de um valor mobiliário em negociação.
Por outro lado, os security tokens que conferirem aos seus detentores algum tipo de remuneração ou de participação no empreendimento poderão ser caracterizados como valores mobiliários.
No primeiro caso, a competência para julgar as questões envolvendo as criptomoedas seria da Justiça estadual, por não envolver valores mobiliários. No segundo caso, a competência seria da Justiça federal.
Operações envolvendo bitcoins (e outros criptoativos que não são valores mobiliários) podem ser valores mobiliários?
É possível, ainda, que operações envolvendo criptomoedas que não são valores mobiliários possam ser enquadradas no conceito legal de contratos de investimento coletivo e, consequentemente, sua negociação configure os tipos penais mencionados nos acórdãos em análise. Diversos negócios envolvendo a transação de bitcoins (que não são valores mobiliários) já foram submetidos à apreciação da CVM, que concluiu, na maioria dos casos, tratar-se de oferta irregular de contrato de investimento coletivo.
Talvez o caso mais conhecido seja o da empresa Atlas Quantum, que possui uma plataforma que realiza arbitragem de bitcoin. Após a aquisição de bitcoins com moeda corrente, operação intermediada pela plataforma, a Atlas Quantum realizava operações diárias de arbitragem com os bitcoins adquiridos, repartindo o resultado com os investidores. Esse tipo de operação, segundo concluiu a diretoria da CVM, ultrapassa a simples intermediação para a compra e venda de bitcoins, configurando-se como um contrato de investimento coletivo [9].
Caso um haja a oferta de um produto de investimento em bitcoin em que o ofertante opere a compra e venda dos bitcoins e repasse a remuneração ao investidor ou faça as operações com bitcoins de terceiros em troca de um rendimento prefixado, estaremos diante de um contrato de investimento coletivo, segundo o entendimento apresentado pela CVM.
É importante destacar que o que foi enquadrado como valor mobiliário — no caso, contratos de investimento coletivos — não foi o bitcoin em si, nem o serviço de intermediação para a compra de bitcoins (exchange), mas a operação estruturada que envolvia os bitcoins.
Conclusão
A definição sobre a competência para a análise de crimes envolvendo criptomoedas depende da existência ou não de um valor mobiliário. Configurando-se o valor mobiliário, a competência será da Justiça federal. Não se tratando de um valor mobiliário, a competência será da Justiça estadual.
Para que se configurem como valores mobiliários, é necessário que as criptomoedas ofereçam aos seus detentores o “direito de participação, de parceria ou de remuneração” previsto no artigo 2ª, IX, da Lei 6.385/1976. É necessário que esses direitos sejam originados diretamente da estrutura das criptomoedas. Caso a remuneração obtida pelos investidores se origine exclusivamente de sua valorização no mercado, como é o caso do bitcoin, ela não será considerada valor mobiliário.
É possível, ainda, que operações envolvendo criptomoedas que não são valores mobiliários sejam enquadradas como um valor mobiliário, a depender da dinâmica de operação e da remuneração apresentada pelos ofertantes.
A análise dos acórdãos dos casos julgados pelo STJ (CC 161.123 e HC 530.563) leva a crer que em ambos os casos se estava diante de contratos de investimento coletivo, pois os dois casos tinham por objeto um investimento em bitcoins oferecido publicamente no mercado, em troca de uma remuneração variável, sendo que as operações de compra e venda eram feitas exclusivamente pelo ofertante. Portanto, ambos os casos seriam, no nosso entender, de competência da Justiça federal.
P.S.: Esta é uma versão resumida do artigo “Operações Envolvendo Criptomoedas: competência da Justiça Estadual ou da Justiça Federal?”, que será publicado na edição de setembro/dezembro – 2020 da Revista de Direito Empresarial: RDEmp.
[1] Artigo 7º Emitir, oferecer ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores mobiliários:
[…]
II – sem registro prévio de emissão junto à autoridade competente, em condições divergentes das constantes do registro ou irregularmente registrados;
[…]
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa
[2] Artigo 27-E. Exercer, ainda que a título gratuito, no mercado de valores mobiliários, a atividade de administrador de carteira, agente autônomo de investimento, auditor independente, analista de valores mobiliários, agente fiduciário ou qualquer outro cargo, profissão, atividade ou função, sem estar, para esse fim, autorizado ou registrado na autoridade administrativa competente, quando exigido por lei ou regulamento:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
[3] “A emissão de ‘utility tokens’ ocorre quando o ativo virtual emitido confere ao investidor acesso à plataforma, projeto ou serviço, nos moldes de uma licença de uso ou de créditos para consumir um bem ou serviço”: FAQ da CVM sobre ICO, disponível em http://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2017/20171116-1.html.
[4] “Com alteração na legislação, além do alargamento do conceito para abarcar novas formas de investimento, o sistema de caracterização de valores mobiliários tornou-se mais adequado ao nosso ordenamento jurídico. Da mesma forma, deixa caminho aberto para a criação de novos valores mobiliários, à medida que as necessidades econômicas o exigirem”: CAMINHA, Uinie. Valores mobiliários. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/216/edicao-1/valores-mobiliarios.
[5] ROHR, Jonathan and WRIGHT, Aaron. Blockchain-Based Token Sales, Initial Coin Offerings, and the Democratization of Public Capital Markets (October 4, 2017). Cardozo Legal Studies Research Paper No. 527; University of Tennessee Legal Studies Research Paper No. 338, p. 491.
[6] http://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2017/20171116-1.html. Acesso em 07/06/2020
[7] COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Processo SEI 19957.010938/2017-13.
[8] Além do ICO do Niobium Coin, foi submetida à análise da Comissão de Valores Mobiliários o ICO do LexToken (Processo SEI 19957.011238/2018-27). Segundo apuração da oferta pela CVM, os LexTokens eram ativos representativos do investimento da empresa ofertante (Grupo Alexandria) no mercado de energia renovável e ofereciam remuneração atrelada à performance do Plano de Expansão de Energia Renovável da empresa. Portanto, o LexToken se enquadra na categoria de security token.
[9] COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Processo SEI 19957.006966/2019-06.