André Santa Cruz e Amanda Mesquita Souto
Diante da morte de sócio de uma sociedade contratual (o exemplo mais comum é a sociedade limitada), o caput do art. 1.028 do Código Civil prevê que, em regra, haverá a liquidação da quota do falecido, com a consequente dissolução parcial da sociedade. Contudo, o mesmo dispositivo legal prevê exceções à liquidação da quota: i) o contrato social pode dispor de forma diferente; ii) os sócios remanescentes podem optar pela dissolução total da sociedade; e iii) o sócio falecido pode ser substituído, por acordo dos sócios remanescentes com os herdeiros.
Sendo decidido pela liquidação da quota do falecido (dissolução parcial) ou pela dissolução total da sociedade, não existem controvérsias: a deliberação será realizada pelos sócios remanescentes, hipótese em que, para fins de registro na Junta Comercial, não haverá a necessidade de apresentação de alvará judicial ou formal de partilha; ademais, tampouco será necessária a ciência ou anuência dos herdeiros do falecido ou a participação do inventariante.
Entretanto, as outras duas hipóteses previstas no Código Civil dependem da existência de um acordo, que tanto pode ser prévio quanto posterior ao falecimento do sócio. A primeira situação está prevista no inciso I do art. 1.028 do CC, e ocorre quando os sócios, em vida, estipulam no contrato social como aquela sociedade irá prosseguir diante da morte de algum deles. Já a segunda encontra previsão no inciso III do mesmo artigo do CC, possibilitando que, sendo silente o contrato social, os sócios remanescentes e os herdeiros regulem a forma de substituição do sócio falecido.
Ambas as situações estão pautadas na autonomia privada e na liberdade contratual, que ganharam mais força após a publicação da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Mas será que após a edição dessa lei há mesmo liberdade absoluta para que os sócios regulem a eventual morte de um sócio no contrato social?
O dispositivo que julgamos ser um dos mais importantes da Lei da Liberdade Econômica (LLE) é o art. 3º, que estabelece os direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, que são essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômico do País. No inciso V do art. 3º há expressa previsão de que é um “direito de liberdade econômica” a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, sendo que em casos de dúvidas de interpretação no direito civil e empresarial deve prevalecer a autonomia privada das partes, exceto se houver expressa disposição legal em contrário.
Além dessa regra, destacamos o inciso VIII do mesmo artigo, que traz a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública. Ou seja, nos negócios empresariais deve prevalecer a vontade das partes.
Portanto, poderíamos concluir que o contrato social poderia trazer qualquer disposição para regular as consequências societárias diante da morte de um sócio. Mas essa conclusão é equivocada, porque é importante se ter em mente que não se pode analisar a legislação de forma isolada, e a própria LLE, apesar de garantir a liberdade contratual, como regra, faz ressalvas quanto a situações em que há normas de ordem pública ou expressa vedação legal.
Além disso, a Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que regula o Registro Público de Empresas Mercantis, prevê que não podem ser arquivados pelas Juntas Comerciais os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública.
Assim, tem-se que o limite da liberdade contratual é a própria lei. Se não houver vedação legal em contrário ao que se objetiva pactuar, é lícito aos sócios dispor em contrato social sobre os efeitos que o falecimento de um deles gerará sobre suas quotas. Os sócios podem tratar de forma diversa para cada um dos sócios; prever que os herdeiros serão admitidos na sociedade, independentemente do consentimento dos sócios remanescentes; regular a substituição do falecido pelos sócios supérstites ou por um terceiro, de forma a manter incólume o capital social etc.
Sobre a liberdade contratual, há um precedente julgado pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) – Recurso ao DREI nº 14022.116144/2022-5 – que defendeu a autonomia privada e a validade de cláusula que previa, no caso de falecimento de sócio, que a sociedade continuaria com o sócio remanescente, o qual iria adquirir as quotas do sócio falecido de forma automática. Em suma, o contrato social permitiu a cessão e transferência automática das quotas do falecido.
Nesse ponto, é importante destacar que não há vedação legal expressa proibindo tal disposição de vontade, visto que os herdeiros não são sócios e não fazem jus aos direitos pessoais de sócio, cabendo-lhes apenas o direito patrimonial em relação às quotas do sócio falecido.
Alfredo de Assis Gonçalves Neto, em comentários ao art. 1.028 do CC1, explica que “os direitos pessoais do sócio não se transmitem aos sucessores do autor da herança e, por isso, no interregno entre o falecimento e o recebimento dos respectivos haveres, àqueles não é dado participar da sociedade, deliberando, impugnando ou fiscalizando os negócios sociais. (…) Sucessores ou herdeiros não são sócios, mas credores de haveres”.
No entanto, há quem defenda que, no âmbito do Registro Público de Empresas Mercantis, uma barreira para a liberdade contratual nas cláusulas sobre falecimento de sócio estaria no 426 do CC, que dispõe que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”, ou seja, o contrato social não poderia estipular a forma de sucessão do sócio falecido, prevendo quem dos herdeiros ou sucessores receberia o seu percentual de participação na sociedade, porque nesse caso se estaria realizado um testamento por via transversa.
Essa corrente defende que cláusulas de contrato social ou de acordo de sócios que, de antemão, disciplinam regras sucessórias desrespeitam à proteção da herança, tida como um direito fundamental pelo art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal.
Bevilaqua2 sustenta que os pactos sucessórios, “ainda que contassem com a concordância da pessoa de quem a sucessão se trata, contrariariam o princípio da liberdade essencial às disposições de última vontade, que devem ser revogáveis, até o momento da morte do disponente. Assim, a justificativa do dispositivo superaria a tradicional noção de votum alicujus mortis e passaria a cuidar do interesse do herdeiro e até mesmo do disponente de quem a sucessão se tratará”.
Ocorre que, tendo por base a Lei da Liberdade Econômica, há quem defenda que o contrato social pode prever regras acerca da sucessão empresarial, desde que se respeite, por óbvio, quanto ao aspecto patrimonial, a disciplina do Direito de Família. Assim, com base no inciso I do art. 1.208 do CC, o contrato social poderia prever a transmissão de quotas a um determinado sucessor ou terceiro, quando da eventual morte de sócio, de modo que o art. 426 do CC não seria aplicável, em decorrência da existência de previsão específica.
Em que pese no Direito de Família existir a necessidade de observância das regras de sucessão, não podemos confundir os institutos. Conforme vimos, a morte não transmite de forma automática os direitos pessoais dos sócios, mas os direitos patrimoniais, de modo que não haveria vedação para que um herdeiro fosse sucessor do sócio falecido, enquanto aos outros fossem garantidos os direitos patrimoniais relativos aos seus respectivos quinhões, conforme o caso. Nessa situação, o contrato social teria, inclusive, a função de estabilizar a situação societária, visto que nem todos os herdeiros possuem condições ou interesse de se tornarem sócios.
No que tange ao registro, importante consignar que, ao órgão executor do Registro Empresarial compete arquivar os instrumentos produzidos pelas sociedades empresárias que se apresentarem formalmente em ordem, não sendo cabível interferir na relação jurídica interna da sociedade. Devem-se examinar somente os aspectos formais dos atos e documentos levados a arquivamento, velando-se pelo fiel cumprimento da lei (inciso I do art. 35 da lei 8.934, de 1994).
Por fim, cabe ressaltar que, sendo o caso de acordo para substituição do sócio falecido – quer seja em decorrência de previsão contratual prévia ou de ajuste posterior entre os sócios remanescentes e os herdeiros -, para fins de registro na Junta Comercial haverá a necessidade de apresentação de alvará judicial e/ou formal de partilha, na medida em que o art. 619, inciso I, do Código de Processo Civil prevê que, no inventário, depende de autorização do juiz a alienação de bens de qualquer espécie.
Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/401691/limites-do-contrato-social-para-regular-os-efeitos-da-morte-de-socio