Entre tantas novidades, a recente Instrução Normativa 81, exarada pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) previu a possibilidade de instituição de quotas preferenciais sem direito a voto para as sociedades limitadas regidas supletivamente pela Lei das S/A.
Na prática, essas limitadas poderão fazer uso da nova ferramenta para estabelecer uma dinâmica societária mais complexa, com sócios titulares de vantagens políticas e econômicas diferenciadas.
A regra é um avanço, porque confere mais flexibilidade às limitadas, amplia o leque dos arranjos intrassocietários e permite aos empresários mais liberdade de ação. Ademais, essa novidade está na lógica da agenda liberal do atual Governo e é um desdobramento previsível da Lei de Liberdade Econômica, em vigor desde o ano passado.
Não haveria, por assim dizer, “sentido prático” em qualquer oposição à utilidade dessa nova norma, numa avaliação axiológica do direito, sobretudo porque ela consagra uma mudança há muito defendida pela maioria dos comercialistas no Brasil.
A pergunta que irrompe de tudo isso é esta: teria a referida IN invadido terreno privativo da lei, a chamada “Reserva Legal”, ou teria apenas explicitado, para o bem da segurança jurídica, o alcance do texto legal vigente?
O Código Civil, no seu artigo 1.053, criou dois subtipos de sociedades limitadas: um regido subsidiariamente pelas regras das sociedades simples, e outro regido supletivamente pela Lei das S/A. Também é importante registrar que a possibilidade de quotas iguais ou desiguais esteve sempre prevista no artigo 1.055, do Código Civil.
O que o DREI está agora prevendo na IN 81 é que, para esse último subtipo societário, seja possível a criação de quotas preferenciais sem direito a voto (ou com restrição a esse direito). Isso está efetivamente contemplado no Anexo 5.3 da IN, que trata especificamente das Sociedades Limitadas com regência supletiva pela Lei das S/A.
O DREI cuidou de ser detalhista na nova normatização, conceituando as quotas preferenciais como aquelas que atribuem aos seus titulares direitos econômicos e políticos diversos, permitindo, inclusive, a supressão ou limitação do direito de voto para esses quotistas. É nesse exato ponto que recai o suposto problema da reserva legal e da eventual impossibilidade de uma tal previsão ser feita por meio de IN.
A lógica que arma e ordena o subsistema das limitadas no direito brasileiro, desde o Decreto 3.708 até o Código Civil, é o de uma sociedade de pessoas que, com base em afinidades e convergência de propósitos, resolvem se associar.
Mesmo para o caso das limitadas regidas supletivamente pela Lei das S/A tal premissa vale. Essa lógica, para muitos, informaria um princípio norteador desse caráter personalíssimo nas limitadas: quase tudo vale, menos o sócio não poder votar.
Perceba-se que a regência supletiva pela Lei das S/A, por si somente, não anula esse pilar da pessoalidade, só o mitiga um pouco. A melhor compreensão acerca da supletividade é a de que, na omissão do Código Civil, podem-se aproveitar as regras das S/A, mas estas, por óbvio entendimento, não podem colidir com as disposições do próprio Código.
Assim, por essa ordem de pensamento, não é possível uma limitada exatamente igual a uma anônima, porque esse elemento da pessoalidade é a principal nota distintiva clássica entre os dois tipos societários, ainda que não seja a única e também não seja absoluta.
Quer-se dizer com isso que é possível estruturar uma limitada menos focada nas relações pessoais, assim como é viável também constituir uma anônima (fechada) na qual as relações pessoais tenham mais ênfase.
Mas, se os empresários querem um modelo de sociedade de capital, na qual as relações pessoais tenham pouco ou nenhum peso, devem organizar seus negócios por meio de uma sociedade anônima fechada.
Por outro lado, não há no capítulo das limitadas no Código Civil norma expressa que vede a supressão ao direito de voto, ou proíba a quota preferencial, senão por via indireta. É o caso do artigo 1.061, que estabelece que é necessária a unanimidade dos sócios para designar administrador não sócio enquanto o capital social não estiver totalmente integralizado.
Assim, com certeza a supressão ao direito de voto prevista na IN 81 estaria condicionada à observância dessa prerrogativa, conferida a todos os sócios. No mais, nenhum dos quóruns fixados nos artigos 1.076 e 1.077 remete à unanimidade.
Além disso, perceba-se que a IN resolveu essa questão ao dizer que “havendo quotas preferenciais sem direito a voto, para efeito de cálculo dos quóruns de instalação e deliberação previstos no Código Civil consideram-se apenas as quotas com direito a voto”. Portanto, quando o CC fala em unanimidade, 2/3, 3/5, maioria etc., deve-se levar em conta apenas as quotas com direito a voto.
Já no capítulo das sociedades simples, pelo menos duas regras proíbem a supressão do voto, ao tornarem nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio da participação nos lucros (art. 1.008), e ao imporem a necessidade de unanimidade para certas deliberações (art. 999).
Ou seja, não poderia a supressão do direito a voto estar contemplada numa limitada regida subsidiariamente pelas regras dedicadas às simples, o que permite concluir que, se a limitada for regida supletivamente pela Lei das S/A, essas vedações não se aplicariam, razão pela qual as quotas preferenciais na IN 81 não estão contempladas para as limitadas simples.
Sob essa perspectiva legalista e formal, andou bem a IN 81 ao regular as quotas preferenciais sem direito a voto nas limitadas regidas pela Lei das S/A. O DREI exerceu suas prerrogativas de órgão regulamentador, agindo dentro dos limites semânticos fixados pelo Código Civil. Não parece sensato achar que uma norma infralegal não possa, em alguma medida, superar paradigmas. Ela o pode, desde que não afronte a lei.
Resta saber como a doutrina e a jurisprudência responderão à tentativa de superação do paradigma da pessoalidade aqui antes referido por meio de uma IN, e como se darão de agora em diante os conflitos societários que decorrerem da contratualização de quotas preferenciais e das variações de poder nelas previstas.